Artigo: Quando a DPE/MA ajudou Noel a passar o Natal em casa

29/01/2016 #Administração

Por Clara Welma Florentino e Silva *

 

Já dizia Saramago, “a Justiça continuou e continua a morrer todos os dias. Agora mesmo, neste instante em que vos falo, longe ou aqui ao lado, à porta da nossa casa, alguém a está matando. De cada vez que morre, é como se afinal nunca tivesse existido para aqueles que nela tinham confiado, para aqueles que dela esperavam o que da Justiça todos temos o direito de esperar: justiça, simplesmente justiça. Não a que se envolve em túnicas de teatro e nos confunde com flores de vã retórica judicialista, não a que permitiu que lhe vendassem os olhos e viciassem os pesos da balança, não a da espada que sempre corta mais para um lado que para o outro, mas uma justiça pedestre, uma justiça companheira quotidiana dos homens (...)”

Às vésperas desse último Natal, pudemos presenciar a importância do trabalho da Defensoria Pública, sobretudo para aqueles que estão “invisíveis” para a sociedade. Por ironia do destino, o nome do assistido era So-Noel.

E peço a licença para conjugar os verbos no plural, misturando pessoas e por ventura incorrendo em algum erro, mas há razão semântica, já que minha participação no caso foi conjunta, minha indignação foi coletiva, mas eu transmito minha versão desses fatos.

Esclareço, pois, que fui eu, com outros defensores, com funcionários da unidade prisional que sentimos essa “morte da justiça”, morte lenta e gradual, por quase três anos, e agimos uma, duas, várias vezes, teimando em crer que “nada é impossível mudar”.

No presente caso, estávamos diante daquelas hipóteses em que, em atendimento nas unidades prisionais, nos deparamos com casos de presos de outras comarcas ou estados, e que, portanto, não podemos atuar, salvo para apresentar algum esclarecimento vago, diante da ausência de contato com os autos e da própria limitação de atuação nesses casos.

Foi quando me deparei com Sonoel, contando sua história. Os próprios funcionários da unidade prisional demostravam certa inquietude com o fato de ele estar preso preventivamente desde 05.04.2013, então há 2 anos e 9 meses, por um processo de roubo que tramitava no Pará, na comarca de Rondon.

Sonoel tinha sido processualmente assistido, no início, por um Defensor Público do Estado do Pará, mas segundo informações que nos foram repassadas, a comarca ficou sem Defensor e, como ele costumava dizer, “ficou esquecido”. Esse Defensor tinha feito, em 15.09.2014, após contato nosso, pedido de revogação da preventiva (5190-48.2014.8.14.0046), não apenas justificando ausência dos requisitos para a prisão, como, desde a época, excesso de prazo. Sim, acho que nas palavras de Saramago, a justiça foi morta aqui.

Tentando evitar mais uma “morte”, em 29/04/15, indignei-me ainda mais e tentei reunir documentos, ajuizando o Habeas Corpus nº 006683-67.2015.814.0000 no processo nº 2754-53-2013.8. Isso porque, em tese, qualquer um poderia fazê-lo, independente de atribuição. Foi quando o TJPA denegou o pedido e, cientificada da decisão, ajuizei o Recurso Ordinário Constitucional, no STJ, em 20/07/2015.

Foram muitas “mortes da justiça”, na tentativa de explicar que aquela prisão, por aquele excessivo prazo, corria sério risco de configurar verdadeira e inaceitável antecipação executória da própria sanção penal. Mais que isso, havia grande probabilidade de que, mesmo se condenado, o acusado tivesse tido sua liberdade privada por tempo superior ao necessário. Frise-se que Sonoel em nada contribuiu para a demora no andamento do processo, estando recolhido e à disposição da Justiça desde o dia de sua prisão.

O tempo pelo qual o acusado esteve detido, aliado à fase em que o processo se encontrava, bem como o caráter de provisoriedade e excepcionalidade da prisão cautelar, por si só, já demonstravam que houve extrapolação do prazo razoável para a conclusão do processo. Assim, não poderíamos, por concluída a instrução processual, permitir flagrante violação à razoável duração do processo.

Em 06/10/2015, foi julgado, no Superior Tribunal de Justiça, o Recurso em Habeas Corpus nº63334, interposto pela DPE/MA, sob relatoria do Ministro Nefi Cordeiro. Na ementa do julgado reconheceu-se a mora desarrazoada estatal, sendo o pedido feito pela Defensoria Pública do Maranhão provido, com o consequente relaxamento da prisão preventiva de Sonoel.

Poderia essa decisão do STJ ter encerrado todas essas “mortes da justiça”, ao menos nesse caso, não fosse mais uma vez a desídia estatal.

Após remoção interna da carreira, saí da comarca, mas não consegui me desvincular do caso. Foi quando unimos a defensora pública Dra. Manuela Correia à nossa indignação, potencializada quando percebemos que, apesar do provimento do pedido, So-Noel permanecia preso, ainda em dezembro.

Os funcionários da unidade prisional entraram em contato comigo e, articulando com a Dra Manuela, percebemos que o alvará de soltura de Sonoel ficou “perdido” por mais de dois meses na secretaria do juízo de primeiro grau, em Rondon-PA. Por diversas vezes, a Dra Manuela entrou em contato com a vara, sendo informada de que esta não havia sido comunicada pelo STJ acerca da decisão liberatória do acusado.

No entanto, a sentença já estava publicada, havia divulgação na internet e Sonoel continuava preso. Pensando na solução mais célere, buscamos a corregedoria do TJPA, a fim de averiguar o que poderia ter acontecido.

No mesmo dia 16/12/2015, “achou-se o telegrama do STJ, perdido na secretaria”, e, somente assim conseguiu-se dar cumprimento à decisão. Vale dizer que, caso seja condenado, Sonoel provavelmente ficaria no regime semiaberto, já tendo tempo de prisão para progredir para o aberto ou mesmo fazer jus ao livramento condicional. 

Finalmente, depois de tantos golpes, conseguimos “salvar a justiça”, porque percebemos, nesse caso, que a justiça pode até ser morta inúmeras vezes, mas não para sempre.

Por fim, acredito que Bertold Brecht estava certo quando ensinava a “desconfiar do mais trivial, na aparência singelo. E examinar, sobretudo, o que parece habitual. Suplicando expressamente: não aceiteis o que é de hábito como coisa natural, pois em tempo de desordem sangrenta, de confusão organizada, de arbitrariedade consciente, de humanidade desumanizada, nada deve parecer natural, nada deve parecer impossível de mudar”.

 

        * Defensora pública titularizada no Núcleo Regional da Defensoria Pública do Estado, em Imperatriz

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