* Ronald Pereira dos Santos
São inúmeras as condições que impossibilitam ou embaraçam a plena efetivação dos direitos fundamentais da pessoa com deficiência. A começar pela nossa tradição histórica de não respeitar direitos, salvo quando há uma sanção inevitável. Do contrário, sempre há o famigerado “jeitinho brasileiro” a negar direitos e a violentar a cidadania.
Aliás, essa tradição nacional herdamos de nossos colonizadores portugueses, que também não eram muito ciosos no cumprimento de suas próprias leis. Assim, historicamente, os direitos dos segmentos sociais excluídos do centro do poder raramente foram objeto de preocupação dos grupos dominantes, havendo referências pontuais no ordenamento jurídico pátrio associadas quase sempre a iniciativas de caridade de alguns poucos grupos que se dedicavam à filantropia (ordens religiosas, associações beneficentes etc.).
Isso pode ser claramente constatado quando se analisa a previsão dos direitos fundamentais em nossas primeiras Constituições, ficando claro o caráter meramente beneficente/assistencialista nas poucas indicações de direitos, o que terminava deixando nas mãos de entidades e de grupos particulares o cuidado dos “pobres, necessitados e desvalidos”, acentuando a forte carga de preconceitos existentes.
Mesmo hoje, em pleno século XXI, e passados mais de 22 anos da Constituição Cidadã de 1988, a pessoa com deficiência luta brava e incansavelmente para ter respeitados seus direitos fundamentais, mesmo inseridos em extenso rol quer seja no texto constitucional, quer seja na legislação infraconstitucional.
De fato, mesmo com a atuação do movimento social, por meio de suas entidades, Conselhos de Direitos, da Defensoria Pública e do Ministério Público, ainda está longe o horizonte de pleno respeito aos direitos da pessoa com deficiência, embora não se negue algumas conquistas nesse sentido, pois há pouca sensibilidade e ínfimo compromisso social dos gestores públicos em implementar políticas adequadas para garantia dos serviços que efetivariam os direitos fundamentais da pessoa com deficiência.
Direitos essenciais como saúde, educação, segurança, moradia, saneamento básico, além de outros igualmente importantes, são sistematicamente negados pelo Poder Público, que não cumpre o dever constitucional de velar pela garantia de tais direitos e, assim, promover o bem-estar coletivo. Ao contrário, o gestor estatal é o primeiro a negar direitos, humilhando o cidadão e desprezando sua condição humana, restando ao lesado a única alternativa de buscar o Poder Judiciário por meio de advogado constituído, da Defensoria Pública, no caso de hipossuficiência, ou do Ministério Público - o que é mais comum.
Lamentavelmente, nossos magistrados revelam não estar devidamente preparados para enfrentar a enorme quantidade de demandas que lhes chegam diariamente, abarrotando as prateleiras das secretarias judiciais dos Fóruns e Tribunais de todo o Brasil. E as razões são várias, indo desde a falta de formação para lidar com um número cada vez crescente de ações coletivas, reduzido número de juízes e de servidores para atender o volume torrencial de demandas até a arcaica legislação processual, muito mais preocupada com a ritualística dos atos judiciais do que com a celeridade em resolver com eficiência os casos apresentados.
Desse modo, a pessoa com deficiência, que não consegue ter seus direitos fundamentais garantidos, em razão da omissão do gestor público, também encontra colossais dificuldades nesse sentido quando busca a tutela jurisdicional, pois, quando consegue acesso ao Poder Judiciário, por meio da Defensoria Pública ou do Ministério Público, muitas vezes não tem sua pretensão atendida ou enfrenta enorme demora na solução do problema, o que termina por inviabilizar, na prática, a efetivação do direito que venha a ser reconhecido na decisão judicial em função da irreversível lesão já sofrida.
Mas a sociedade civil não pode se eximir de sua culpa na manutenção dos preconceitos e na odiosa discriminação que esse segmento social sofre historicamente, uma vez que são recorrentes as graves violações de direitos praticadas contra a pessoa com deficiência. Quem já não desrespeitou ou presenciou alguém negando algum direito fundamental da pessoa com deficiência?
E são várias as formas de violação: ocupar vaga de estacionamento reservada a veículo de pessoa com deficiência, não respeitar o atendimento preferencial nos caixas de atendimento ou nas filas, utilizar indevidamente banheiros exclusivos, não construir rampas de acesso ou fazê-las em desacordo com as normas técnicas, não remover obstáculos nos locais de circulação de uso público, nem sinalizá-los adequadamente, não disponibilizar mobiliário acessível, negar vaga reservada em emprego, recusar admissão em instituição educacional em função da deficiência, não ser solícito a quem precisa de ajuda para se locomover, reproduzir preconceito e outras formas de conduta que aprofundam a discriminação contra a pessoa com deficiência etc.
O rol acima é apenas exemplificativo e seria tarefa quase impossível enumerar todas as violações de direitos cometidas contra a pessoa com deficiência, o que demonstra nossa indubitável responsabilidade pela situação existente de exclusão social e das condições injustas em que se encontra alguém com alguma deficiência. E o quadro é por demais preocupante, na medida em que a população brasileira está envelhecendo rapidamente e muitas doenças são degenerativas e incapacitantes, demonstrando que o número de pessoas com deficiência ou mobilidade reduzida tende a aumentar, exigindo que se construa uma sociedade inclusiva, com plena acessibilidade aos bens e serviços disponíveis e garantia de efetivação dos direitos fundamentais.
No dia 3 de dezembro, portanto, data em que se comemora o Dia Internacional da Pessoa com Deficiência, houve intensa mobilização em torno dessa e de outras questões referentes à concretização dos direitos fundamentais da pessoa com deficiência, exigindo o compromisso coletivo irrestrito na construção de uma sociedade que não seja excludente.
Somente com a participação de todos nós é que seremos capazes de construir uma sociedade verdadeiramente justa, fraterna e igualitária, nos exatos termos de nossa vigente Constituição, mas para isso teremos que rejeitar o egoísmo e o desprezo ao próximo, sendo menos escravos de um mundo massificado e consumista, que descarta valores da dignidade humana e que põe em risco a própria sobrevivência do homem em sua jornada histórica na Terra.
* Promotor de Justiça Especializado na Defesa dos Direitos da Pessoa com Deficiência
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