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Tão poucas vezes a cidade de São Luís teve radiografada a sua situação ambiental, urbanística e administrativa de modo preciso quanto nesta entrevista exclusiva do promotor Luis Fernando Cabral Barreto Júnior, da Promotoria de Defesa do Meio Ambiente, Urbano e Patrimônio Histórico, a O Estado.
As falas de Fernando Barreto são um alerta austero para quem administra e para quem mora na Ilha de São Luís. Ele aponta problemas graves sobre os recursos hídricos, a habitação e a coleta de lixo. Ao mesmo tempo, apresenta caminhos que podem contribuir para reduzir o “caos” urbano que se avizinha. Sobre a água, alerta: “É o problema mais sério”. Assim ele define a coleta do lixo: “Estão varrendo o lixo para debaixo do tapete”.
Quando o tema é habitação, Barreto dispara: “É o direito à moradia que leva aos outros direitos. Morar com dignidade quer dizer que tenho acesso a lazer público, meio ambiente saudável, coleta de lixo, água tratada, sossego”. Para o promotor Fernando Barreto todas as questões têm solução se São Luís deixar de ter um “um modelo de gestão ambiental, urbana e no patrimônio cultural de gabinete, fechado e excludente”.
Veja os principais trechos da entrevista.
O Estado – Recentemente, o senhor ingressou juntamente com a Defensoria Pública com uma ação civil pública para assegurar as famílias que residem em área de risco o acesso ao programa de moradia. Habitação é um dos problemas mais graves de São Luís hoje?
Fernando Barreto – É o direito à moradia que leva aos outros direitos. Não adianta dizer que vou ter isso ou aquilo, se não tem moradia digna. Morar com dignidade quer dizer que tenho acesso a lazer público, meio ambiente saudável, coleta de lixo, água tratada, sossego.Em São Luís, não há política habitacional municipal voltada a retirar as famílias das áreas de risco e nem de criar alternativas habitacionais de mercado acessíveis à população de zero a três salários mínimos. Não há política de regularização fundiária para os assentamentos informais e os despejos forçados são constantes.
O Estado – A questão da regularização fundiária é histórica?
Fernando Barreto – A pauta número um de quem quer fazer gestão do território urbano de São Luís chama-se: regularização fundiária. Enquanto não fizerem isso, o resto é perfumaria. Agora, não fazem porque acaba o medo. Se regularizar o imóvel, o líder comunitário perde o controle daquela população. Não rende mais votos para vereador. Manter essa situação é desumano.
O Estado – O Plano Diretor não possibilita que se tenha uma gestão territorial melhor?
Fernando Barreto – O que há é um total desprezo pelos instrumentos e regras do atual Plano Diretor. Sucessivamente, a Câmara Municipal renova o prazo para que os instrumentos de execução do Plano Diretor não sejam elaborados. O Plano Diretor é de 2006. Fez quatro anos. E nenhum dos seus instrumentos foi implantado. Nem mesmo a legislação de toponímia foi implantada. O Plano Diretor continua sendo uma folha de papel. É uma folha de papel. O Poder Executivo municipal não o executa. Não coloca os instrumentos para funcionar. E o pior é que não avalia.
O Estado – Pior do que não executar?
Fernando Barreto – Pior do que não executar a política urbana é não se avaliar essa política urbana. Isso é fruto de falta de mentalidade de gestão. Em São Luís não existe Planejamento e Gestão Urbana Participativa. O modelo em execução é ultrapassado por ser centralizador e focado nas grandes obras que, na prática, apenas repetem um ciclo vicioso de investimento público induzindo a mais-valia imobiliária, aumento da especulação e formação de mercado imobiliário excludente. Esse modelo aumenta as tensões sociais e sobrecarrega a infra-estrutura de serviços públicos para as áreas onde habitam as classes A e B, e penalizam as classes pobres.
O Estado – O fato de o Plano Diretor não ser participativo reforça esse modelo centralizador?
Fernando Barreto - Em São Paulo, a Justiça anulou o Plano Diretor por não ser participativo. A Justiça acabou com o Plano porque virou uma colcha de retalhos. Aqui, não fizeram a revisão da Lei de Zoneamento de forma participativa. O modelo de gestão é dos anos 1970. Eles concebem a gestão pública a partir do chefe. Da sua discricionariedade. O rei sou eu. Ninguém planeja para daqui a 10 anos. Tem de ser agora.
O Estado – O modelo de gestão que se tem é ainda dos anos 1970?
Fernando Barreto - É que São Luís, nos termos ambientais e urbanísticos, é gerenciada por modelo dos anos 1970. É um modelo de gabinete. Fechado e excludente. É assim na gestão ambiental, urbana e no patrimônio cultural. Ela não é uma gestão transparente, participativa e inclusiva. Uma das características é a decisão de gabinete e a grande obra. Lá vem o sábio e diz: a solução para os engarrafamentos em São Luís são novas avenidas. Esse discurso é falacioso e ultrapassado.
O Estado – Mas esse discurso é sempre presente?
Fernando Barreto - O crescimento caótico da cidade revela que não existe acompanhamento e nem avaliação dos instrumentos indutores da ocupação urbana. Os engarrafamentos em avenidas são resultado do adensamento descontrolado de várias regiões da cidade, inclusive com a proliferação de condomínio horizontais, os quais suprimem várias alternativas de interligação do tecido viário da cidade. Novas avenidas não resolvem o problema dos engarrafamentos, que decorrem da má interligação entre bairros, da deficiência do transporte de massa e do superadensamento em regiões periféricas da cidade. A ausência de políticas metropolitanas faz com que surjam adensamentos elevados em cidades vizinhas e que provocam fenômenos de migração noturna para cidades-dormitório.
O Estado – A soma de congestionamentos de veículos e adensamentos populacionais amplia os níveis de poluição?
Fernando Barreto – Em São Luís, o nível de poluição está ficando sério e o poder público não acordou para isso. A poluição do ar é séria e ninguém trata isso. É poeira, gases e partículas. Isso é a maior caixa preta. Quem monitora? Com que padrões? Você não sabe. Temos carvão mineral sendo queimado. Temos uma frota enorme de veículos. Quem está medindo a qualidade do ar em São Luís? Poluição aqui virou sinônimo de balneabilidade das praias. Isso é a cereja. Antes de saber se a praia é própria para banho, tenho que se saber a água do meu chuveiro também é e se o ar que respiro é próprio para respirar.
O Estado – Existe um processo acelerado de ocupação da faixa de praia em São Luís?
Fernando Barreto - As pessoas estão indo cada vez mais em direção ao mar. O avanço da construção sobre a faixa de mar é extremamente perigoso, pois são áreas frágeis e recentes. Repete-se o modelo que não deu certo em Recife (PE), em Santos (SP) e no Rio de Janeiro. Querem construir cada vez mais em cima da linha d’água. Além de serem construções em áreas de risco, retira-se da população o acesso público à praia.
O Estado – Outro problema em São Luís é que as áreas residenciais estão se tornando áreas mistas?
Fernando Barreto - É a falta do controle do ordenamento territorial. Não tem nenhum controle. Áreas residenciais vêm sendo tomadas por atividades de comércio e serviços sem nenhum planejamento gerando conflitos com o uso habitacional os quais se estendem desde a superocupação de vias públicas até a poluição sonora, na maioria das vezes decorrente da localização imprópria de atividades ruidosas. Não há controle algum da implantação de atividades incompatíveis ou inconvenientes nas diversas áreas da cidade. O que está acontecendo é que todas as áreas residenciais da cidade estão se tornando áreas mistas.
O Estado – Mas isso é visto como interessante por alguns setores. Fernando Barreto – Em um primeiro momento, pode parecer interessante, mas em longo prazo isso significa um total comprometimento da qualidade vida. E onde isso aconteceu, comprovadamente, os índices de violência se elevaram. Você sobrecarrega a infra-estrutura viária, a de abastecimento de água. O ordenamento do território é para se entender os processos de movimentação da cidade e controlá-los, mas o poder público não o faz. Antigamente você não tinha lan house, pet shop, farmácia só vendia remédios. Surgem atividades novas e você não pensa como encaixá-las na Lei de Zoneamento. Foi essa dinâmica do comércio que a Lei de Zoneamento de São Luís não foi capaz de ocupar.
O Estado – Isso tem gerado outro problema, que é a questão da acessibilidade na cidade?
Fernando Barreto - Aqui anda bem quem tem carro. Quem não tem não anda. Também não tem calçada. Isso tem a ver com desenvolvimento urbano e preservação da qualidade de vida. Se isso continuar assim, daqui a um tempo não teremos nem mais calçadas. Calçada aqui já é sinônimo de estacionamento para carro. Isso porque nos referimos às pessoas que não tem necessidades especiais. Imagine o drama de um portador de necessidades especiais. E o sujeito que anda normal não tem acessibilidade.
O Estado – Todo esse crescimento caótico contribui em muito para que se produza mais lixo. E coleta de lixo é uma questão grave em São Luís?
Fernando Barreto – Estão varrendo o lixo para debaixo do tapete. A forma mais racional para uma cidade como esta, é você ter programas de redução do volume de lixo. Porque não se tem como evitar que a população deixe de gerar toneladas e toneladas de lixo. O fato de São Luís ser uma das limitações territoriais e fragilidades ecológicas amplia esse problema. Em princípio, não é viável que os depósitos da cidade sejam fora da Ilha de São Luís, pois o custo desse transporte do lixo pode chegar a valores impraticáveis. Qual município aceitaria as toneladas de lixo de uma cidade de 1 milhão de habitantes? Nós temos apenas uma direção, que é Bacabeira. Por isso afirmo que se varre o lixo para debaixo do tapete.
O Estado – E a idéia de ampliar a capacidade do Aterro da Ribeira é seguir jogando o lixo para debaixo do tapete? Fernando Barreto - Ampliar o aterro por mais 10 anos, por mais 20 anos, isso é varrer o lixo para debaixo do tapete. É jogar o problema para a próxima geração. O aterro foi um projeto dos anos 1990. É de 20 anos atrás. Ali eles pensavam que o aterro resolveria. 20 anos depois, eles viram que o aterro não resolveu, é caríssimo, e ampliá-lo por mais 10 anos não resolverá o problema. A ampliação do aterro é levantar o tapete e jogar o lixo para baixo. Quem vier vai encontrar lá a podridão toda. Falta um programa de gerenciamento de resíduos sólidos da construção civil que São Luís não tem. Esse programa é exigido por uma resolução do Conama, e São Luís está em falta com ele desde 2005.
O Estado – Por que não fazem?
Fernando Barreto - Porque isso significa retirar custos da Prefeitura e jogar para o particular. Isso traz medidas antipáticas. Pois quem tem que gerenciar o resíduo sólido da construção civil é o grande produtor. Na prática, eles contratam um contêiner, põem na porta do prédio e joga tudo dentro do contêiner. Não faz segregação, reaproveitamento, não faz nada. Esse lixo vai para o Aterro da Ribeira.
O Estado – E a situação dos recursos hídricos da Ilha de São Luís? Como o poder público e a sociedade lidam com isso?
Fernando Barreto - É o mais sério. É um caos em curto prazo. Tão sério quanto o do lixo. Nós só temos água subterrânea. A outra água que temos disponível é a da Bacia do Rio Itapecuru. O dia em que a Bacia Hidrográfica do Rio Itapecuru tiver um conselho de bacia, um plano diretor da bacia, nós vamos ter que pagar por aquela água. Essa questão da água volta à fragilidade ambiental da Ilha. Estamos nos enganando achando que se tem água e não tem. Jardim Eldorado e Vila Luizão estão no mesmo lugar. A diferença é econômica. O que eles têm em comum é que não têm serviço de abastecimento de água público. Não tem esgotamento sanitário. O cidadão que mora no Jardim Eldorado consegue se enganar, porque ele pode ter um poço só pra ele e compra água mineral. O do outro lado paga R$ 5/mês para um explorador de água particular.
O Estado – Há muito desperdício?
Fernando Barreto - Em São Luís não há nenhum programa que ensine as pessoas a não desperdiçarem água. Nos comportamos como se tivéssemos muita água e esse comportamento é da classe média. As camadas mais populares já sabem que não têm água. Infelizmente, não há políticas de incentivo e educação para o uso da água. Existe é uma cultura do desperdício em uma cidade que depende de abastecimento externo. Enquanto se desperdiça de um lado, há enormes contingentes populacionais totalmente desabastecidos dos serviços de abastecimento de água e de tratamento de esgotos.
O Estado – A Ilha ainda comporta grandes projetos industriais?
Fernando Barreto – Falta ao Distrito Industrial um planejamento macro-regional de distribuição das atividades. Falta uma avaliação ambiental estratégica. Como não há isso, o bom projeto industrial não vai ter. Temos os projetos industriais pesados, que não interessam a outros locais. Esses conseguem sobreviver em espaços desorganizados. Mas os grandes não podem ser vistos como a salvação.
PERFIL
NOME completo: Luis Fernando Cabral Barreto Junior Formação: Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Maranhão. Cargo: Promotor de Justiça titular da 3ª Promotoria Especializada de Proteção do Meio Ambiente, Urbanismo e Patrimônio Cultural de São Luís. Outras funções: Coordenador do Centro de Apoio Operacional de Meio Ambiente, Urbanismo e Patrimônio Cultural do Ministério Público do Estado do Maranhão. Membro fundador e Secretário da Associação Brasileira de Ministério Público de Meio Ambiente. Publicações: Co-autor do livro "Amazônia. Desafios da Região sob a Perspectiva Jurídica”, e autor de artigos publicados em revistas jurídicas especializadas.
Fonte: Jornal O Estado do Maranhão
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