Artigo: Superendividamento

01/12/2015 #Administração

Por Maiele Karem França Morais*

A facilitação do crédito às camadas populares tem levado ao fenômeno conhecido como superendividamento. Este pode ser entendido como aquela situação em que os ativos da pessoa física de boa-fé (o devedor) são menores do que suas dívidas, em que há o comprometimento da renda para o pagamento dos credores.

Tal fenômeno é recente, contemporâneo ao crescimento da economia, à estabilidade da moeda nacional e à facilidade de aquisição de crédito. É muito comum encontrar pelos centros das cidades pessoas vestidas com roupas coloridas e alegres oferecendo aos transeuntes o novo produto da moda: o crédito.

Este se tornou uma mercadoria e produto comum como qualquer outro, como uma roupa ou carro, que a todo momento é apresentado aos consumidores como a solução para todos os males que o afligem: à uma dívida com o plano de saúde ou à impossibilidade de cursar a faculdade dos sonhos.

Houve uma facilitação de crédito, principalmente o pessoal, que era produto classificado como caro e escasso, devido às incertezas do mercado e a falta de estabilidade da economia. Foi em 1994, e mais acentuadamente nos últimos oito anos, que o panorama começou a modificar-se. Parcela deste crescimento tem origem na descoberta de uma parcela da população que serve excluída do sistema formal de crédito, embora representem 77% da população e 71% do consumo no Brasil. Esses consumidores, agrupados nas classes C (renda de cinco a dez salários mínimos), têm sido o grande motor do aumento da oferta de crédito. Estabilidade, sem a qual não pode haver crédito e profissionalização, com desenvolvimento de tecnologias adequadas de analise de risco, são a chave do que está acontecendo.

O empréstimo consignado, uma das espécies de financiamento, em que o pagamento das parcelas é descontado diretamente na folha de pagamento do tomador é outra modalidade que atraiu uma multidão de consumidores. Em 2004, quando surgiu, essa forma de empréstimo fechou o ano com saldo de 9,69 bilhões de reais.

Ocorre que o deslumbramento dos consumidores com o alto poder de compra e a falta de clareza e informação no momento de celebrar o contrato de empréstimo têm levado ao endividamento dos tomadores de crédito. Desta forma, uma relação jurídica não pode deixar de ser tutelada pelo Direito, visto que se trata de uma relação de consumo, em que se mostra patente a vulnerabilidade do consumidor.

Esta vulnerabilidade é encontrada no art. 6°, III, IV, VI do CDC, que dispõem serem direitos básicos do consumidor: informação sobre o produto adquirido, a proteção contra a publicidade enganosa e a prevenção e reparação de danos sofridos em decorrência dos produtos.

É crucial destacar que o ordenamento quer tutelar os devedores de boa-fé, aqueles que se endividam por fatos do cotidiano, como o desemprego, uma doença, uma separação matrimonial, como também aqueles que se endividam por tomarem empréstimos, muitas vezes para quitar outras dívidas, tomando-se desta maneira um círculo vicioso. O Direito não pode de forma alguma proteger o devedor de má-fé, que sem nenhuma justificativa, não honra seus débitos, visto que o crédito e o capital são o que movem o sistema capitalista.

Não raro, ao serem celebrados os contratos, os consumidores não são informados adequadamente sobre as condições do contrato, como a taxa de juros, multa, possibilidade de execução dos bens e de inclusão do nome o SPC e no Serasa em caso de inadimplemento.

Com as mudanças decorrentes da transição do Estado Liberal para o Estado Social (devido a mudanças econômicas, em que o capitalismo e a industrialização transformaram as estruturas e as bases da sociedade, acarretando mudanças significativas) a teoria do contrato também sofreu alterações em sua concepção. Ao não se prezar tanto pelo individuo (e a sua vontade autônoma) e o Estado passando a intervir na economia, nas relações sociais concretamente, surgiu uma nova principiologia contratual. Esta não veio para excluir e extirpar os princípios clássicos (liberdade contratual, obrigatoriedade do contrato, intangibilidade contratual, relatividade do contrato) do Direito Civil, mas para complementá-los, dando uma nova roupagem para os princípios tradicionais que já se mostravam inoperantes para o novo tempo.

O contrato consumerista que possui um dos polos o consumidor hipossuficiente deve ser regido por esses novos princípios. Assim, ao ser celebrado um contrato de financiamento, como também no curso de seu cumprimento devem ser aplicados os novos princípios para evitar o superendividamento e para amparar os superendividamentos.

A boa-fé objetiva, entendida como padrão de lealdade e honestidade, deve nortear este tipo de contrato. Devem se balizar os contratos de financiamento na autonomia da vontade, mas principalmente na lealdade, cooperação e informação entre as partes que visam a um mesmo fim. Uma das causas do superendividamento é a ausência desses princípios, principalmente o de informação, o que compromete a relação jurídica entre o tomador e o credor. Isto precipuamente se dá com os consumidores idosos que não possuem a total liberdade de contratar, já que sua capacidade de entendimento é reduzida, principalmente quando se trata de pessoas de mais idade e que possuem baixo grau de escolaridade e de instrução.

O CDC prevê explicitamente o uso desses princípios, como no art. 4°, inciso III, que determina que as relações de consumo devem se basear na boa-fé objetiva e no equilíbrio entre fornecedores e consumidores. Deste modo, as instituições financeiras devem manter uma atitude de cooperação e lealdade com os tomadores de empréstimo, informando-os sobre as reais condições do contrato, como seus riscos, o valor real dos juros, como também cooperando para que o contrato seja cumprido. Desta maneira, os credores devem prestar toda assistência aos devedores que, impossibilitados de adimplir com as prestações buscam a renegociação da dívida.

Ademais, o art. 6°, V, expressa a possibilidade de revisão do contrato em caso de fatos supervenientes que o tornem excessivamente oneroso. Desta maneira, em caso de desemprego, de uma doença, de falência do pequeno negócio, seria direito subjetivo do consumidor de rescindir o contrato, já que em caso de nulidade de uma cláusula, o CDC determina a continuação do contrato, art. 5, § 2°.

Desta maneira, o Poder Judiciário, amparado na legislação que prevê a vulnerabilidade do consumidor, a ampla possibilidade de revisão contratual, a cooperação e lealdade que são previstos como norteadores dos contratos devem intervir em caso de consumidores superendividados.

Uma decisão de primeira instância no Estado da Bahia mostra como os aplicadores do direito podem intervir neste fenômeno. Em ação civil pública impetrada pela defensoria do Estado, o juiz acolheu parcialmente o pedido da inicial e sentenciou que os empréstimos consignados feitos a idosos analfabetos devem ser registrados em cartórios, mediante instrumento público visando coibir o abuso decorrente dos contratos de empréstimo, já que trazem prejuízo aos contratantes que em sua grande maioria se constituem de pessoas sem instrução, pobres e analfabetas.

O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, em decisão ousada, determinou a renegociação da dívida, além de estipular um novo valor para as parcelas que eram descontadas diretamente na folha de pagamento de um funcionário público:

2007.001.47947 – APELAÇÃO CÍVEL – 1ª Ementa DES. CRISTINA TEREZA GAULIA – Julgamento: 19/09/2007 – SEGUNDA CÂMARA CÍVEL

Ementa: Apelação cível. Revisão de contrato de empréstimo bancário. Relação de Consumo. Subsunção à Lei 8.078/90. Superendividamento. Consignação facultativa de prestações em folha de pagamento de funcionário público. Impossibilidade de pagar o vulnerável o empréstimo na forma contratada sem prejuízo de sua subsistência e vida digna. CDC que sendo lei de ordem pública impõe a proteção do consumidor hipossuficiente na forma preconizada pelo novo direito fundamental inserido no art. 5° inciso XXXII CF/88. Intervenção do Estado-Juiz no contrato para rever a onerosidade excessiva. Inteligência dos arts. 6° V CDC e 421 e 478 NCC. Possibilidade. Consignação em folha de pagamento que por si só não representa a principio a desvantagem exagerada. Má-fpe o apelado que malgrado as condições do autor lhe oferece outros empréstimos e a própria renovação que o autor inicialmente pleiteava. Prestações consignadas que se reparcelam. Inteligência do § 5° do art. 84 CDC. Efetividade e celeridade da prestação jurisdicional. Ofício expedido à Secretaria de Administração do Estado. Reforma de Sentença. Provimento parcial do apelo. Sucumbência rateada.

Pelo exposto acima, faz-se necessário que o Poder Judiciário, os órgãos públicos, e a sociedade civil freiem a abusividade do crédito fácil, visto causarem superendividamento, que é um fenômeno social de grande impacto na sociedade, atentando contra a dignidade da pessoa humana.

* Defensora pública titularizada no Núcleo Regional da Defensoria Pública em São José de Ribamar

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